
Eu tenho bem viva na memória a lembrança de, aos 10 anos de idade, cantar na frente do espelho fingindo ser a Madonna. Eu fazia caras, bocas e até beicinhos, cantava Like a Virgin tudo errado e me escondia rapidinho, disfarçando caso alguém entrasse no quarto.
Desde pequenininha eu sonhava em cantar. Não pela fama, mas tinha vontade de ter uma voz bonita e ser admirada por isso. Tinha inveja de crianças que cantavam, como o Jordy (sim, aquele pentelhinho) ou o Jairzinho e a Simony. Morria de vontade de cantar, mas detestava minha voz. Continuava disfarçando quando alguém entrava no quarto, e cantava baixinho durante as aulas de música, pra professora não ouvir a minha voz.
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Ilhabela, 30 de março de 2008 – 17h45
Estamos na sala de casa, eu, minha irmã, a Ady, seus dois filhotes, a Lícia e um cara que eu nunca vi na vida, o Edílson. Estamos falando sobre vida, morte, experiências, dores e amores, quando algo me faz abrir minha alma. E eu falo. Falo durante horas sobre o verdadeiro resgate de vida que tenho feito, e confesso que, após essa tormenta toda pela qual passei, decidi por fazer aulas de canto, um desejo antigo mas nunca esquecido. Falo dos sonhos infantis e de como meu coração se aquieta e meus pensamentos se distraem quando canto. Todos apóiam. Me vira o tal do Edílson, que até então eu não sei o que está fazendo ali e nem quem é ele.
- Você deve mesmo cantar. Cantar é divino, você entra em contato com você mesma, eleva a alma. Você já cresceu muito nestes 2 meses que contou, eu vejo nos seus olhos o quanto você já evoluiu. Mas cantar vai ajudar muito mais. É fato: você precisa cantar.
Assombrada, me pergunto quem é aquele cara e por que está falando aquilo tudo, com ares de quem sabe das coisas e de quem muito me conhece. Ele fala com tanta propriedade que eu sinto confiança: eu preciso cantar.
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Quando era adolescente, convivi algum tempo com um pessoal da área musical. Conheci uma cantora bastante talentosa, e sempre senti aquela pontinha de inveja branca, vontade de fazer igual.
Nas rodinhas de violão, cantava baixinho porque sabia que sempre havia alguém que cantaria melhor, mais alto e mais afinadinho, mas no fundo morria de vontade de soltar o gogó. Deixava pra cantar no chuveiro as músicas que havia ouvido, contando com a acústica do banheiro que, como a do metrô, sempre favorece até mesmo gralhas como eu.
Adorava ouvir minha irmã cantar – sua voz é limpa, suave e afinada, e me desperta sorrisos.
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Ilhabela, 30 de março de 2008 – algumas horas depois
Depois da conversa da tarde, seguimos todos para o Santa Mia. Quer dizer, todos menos o tal Edílson, a Ady e os pimpolhos. Lá está o Jorge Pinheiro, cantor e violonista talentosérrimo – voz de Toquinho e cadência de Chico Buarque. A Lícia vira pra mim e diz que não era à toa que o Edílson fora à minha casa naquela tarde – se trata de um espírita ultra evoluído, médium de verdade, e que o que ele fala, se escreve. Lembro de suas palavras: “Você precisa cantar”.
O bar inteiro canta “Killing me Softly” enquanto o Jorge apenas dedilha o violão. Eu acompanho a cantoria, certa de que estou devidamente camuflada em meio a tantas vozes. Dali a pouco, lá está ele apontando pra mim, dizendo que está ouvindo minha voz, e me chama para cantar. Recuso, roxa de vergonha e convencida de que ele está enganado – deve ser a voz da minha irmã, limpa e afinada, que ele está escutando. Quando ele termina de tocar, vem à minha mesa e pergunta meu nome.
- Nana.
- Nana, você vai me prometer uma coisa: quando você vier de novo aqui, vai trazer uma música que você vai escolher, vai treinar e vai cantar comigo.
- Desculpe, mas o senhor se enganou. Eu não canto! Minha voz é rouca, grave e eu não sei cantar! Você deve ter ouvido a voz da minha irmã aqui ó, super afinada.
- Foi a sua voz rouca e grave que eu ouvi. Vem aqui de novo e canta. Promete?
- Puxa, assim nunca mais venho aqui! (rio sem graça)
- Não diz isso... você precisa cantar!
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Eu adorei quando a Ana Carolina fez sucesso porque finalmente havia alguém com voz grave cantando bem. Odiava a Zizi Possi e o Edson Cordeiro com todas as minhas forças, porque sabia que jamais cantaria como eles – nem no chuveiro, nem no metrô.
Então eu gostava mais da Ana Carolina e um tempo depois veio a fase da Mônica Salmaso. A Cher também me agradava bastante, mas eu cantava baixinho porque podia parecer estranho sair por aí cantando “do you believe in life after love?”. As pessoas podiam achar que eu estava deprimida, e pra mim a música sempre foi fonte de alegria.
Nos últimos tempos, comecei a cantar músicas tristes. Era a comprovação de que algo estava profundamente errado comigo. A depressão entristecera até mesmo minhas músicas favoritas.
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São Paulo, 4 de abril de 2008 - 23h45
Na festa de uma amiga, começo a contar a um amigo especialíssimo e ultra sensível a grande coincidência da semana anterior, quando havia sido chamada para cantar em público. Ele me ouve atentamente.
- ... e então ele me chamou para cantar no palco, e imagina, isso para mim é im-pen-sá-vel! Nunca aconteceu isso comigo em toda a minha vida, pra mim era um sinal claro de que eu realmente tinha que fazer a aula de canto.
- E você foi cantar?
- Não, claro que não. Mas depois, presta atenção, ele veio falar comigo e você não sabe o que ele me disse.
- Que você precisava cantar.
- ... mas como você...?
- Porque você PRECISA cantar e logo.
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Depois que decidi mudar de vez a minha vida, empenhei forças para realizar todos os antigos desejos e o primeiro deles no qual me debrucei foi a vontade de cantar. Pensei, pensei, pensei... e resolvi fazer aulas de canto. Decidido isso, não parei mais de cantar pela casa. Cozinho cantando Marisa Monte, tomo banho cantando Alceu Valença, dirijo cantando Adriana Calcanhoto. Aceitei as músicas tristes como partes de mim mesma, como minha Voz Interior se fazendo ouvir. 10 vezes por dia me pego cantando “tudo em você é fugaz”.
Tomei coragem e liguei pra professora de canto indicada pela minha terapeuta, a qual, assim que contei a idéia, me disse que, era óbvio, eu precisava cantar. Liguei e marquei. Começa essa quinta. Eu estou ansiosérrima – muito embora a palavra ansiedade hoje em dia me deixe com os cabelos de pé, nada pode definir melhor o meu estado de excitação musical.
Continuo cantando mal e destruindo rodinhas de violão. Mas hoje eu me peguei a cantar as canções do velho Raul e ele não podia estar mais certo: “não sei onde tô indo, mas sei que tô no meu caminho”.