quarta-feira, fevereiro 29, 2012

O casulo da dor

"A bíblia diz: não idolatre falsos deuses. Mas é o que fazemos. Idolatramos o Deus do conforto e do prazer e da segurança. E louvando este Deus, destruímos nossas vidas.

Temos muitas maneiras de lidar com a dor e encontrar prazer e conforto. Mas todas se baseiam na mesma coisa: o medo de encarar o desprazer.

Se precisamos ter tudo sob o nosso controle, é porque queremos evitar qualquer tipo de desprazer. Se nós compreendermos tudo, se pudermos ser espertos de encaixar tudo numa espécie de ordem e sentido, numa completa intelectualização, então talvez possamos não nos sentir ameaçados.

Todas as filosofias e sistemas religiosos da história da humanidade são variações do mesmo tema: táticas para lidar com este medo básico da dor. E somente quando estes sistemas falham é que encaramos a tarefa de praticar (o zen). E estes sistemas invariavelmente falham. Porque eles não são baseados na realidade.

Precisamos abrir mão de nossa escravidão a qualquer sistema de evitação da dor e perceber que não podemos escapar do desconforto apenas correndo mais rápido ou tentando mais intensamente. Quanto mais rápido corremos da dor, mais nossa dor nos assola. E quando aquilo do que dependemos para dar sentido à nossa vida não funciona mais, o que faremos?

Para nos tornarmos borboletas, o primeiro passo é perceber que não podemos mais nos manter larvas. Precisamos enxergar além do nosso Deus de conforto e segurança. Temos que entrar no casulo de dor para retornarmos ao absoluto que, diferentemente do que é relativo, abarca tudo que existe, inclusive o sofrimento, a dor e o desconforto.”
(tradução livre de trecho de Nothing Special - Living Zen, de Charlotte Joko Beck)

sexta-feira, fevereiro 17, 2012


É carnaval.
Não é adequado usar nenhuma fantasia.
Quando estou longe de você, todas as máscaras caem e só
sobra a hesitação constante: pra qual lado seguir? É fácil dizer que devemos
pagar os preços por aquilo que lutamos, quando sabemos exatamente onde queremos
chegar. Mas se torna extremamente difícil aceitar as consequências de uma
atitude em relação à qual se desconhece os motivos.
Será que consegue entender?
Consegue entender que, a partir do momento em que deixei de
te culpar, não sobrou mais ninguém para responsabilizar a não ser eu mesma?
Esta eu pequena, tão insatisfeita, que sente que incomoda tanto toda vez que
deseja alguma coisa, esta eu que sente que não tem direitos, que não pode ficar
insatisfeita, esta eu que fica infeliz quando sente que não pode entristecer.
Esta eu permanentemente sob cobranças.
Como te explicar que uma parte de mim deseja mais do que
tudo renunciar a este projeto ambicioso de tentar me apaziguar antes de mais
nada, para encontrar a paz junto ao seu lado, enquanto meu outro lado, este
mesmo ambicioso me pune me lembrando, a cada beijo que eu te dou, que não era
isso que eu tinha me proposto?
Como explicar que longe de você eu sofro, mas ao seu lado
sofro também, por detestar a imagem que vejo refletida no espelho? Por
visualizar uma eu tão fraca, tão instável, alguém que simplesmente não suporta
o próprio vazio a ponto de ter vontade de simplesmente sumir do mapa sem deixar
vestígios! É possível compreender isso?
Como poderia te pedir para esperar? Como posso pedir para
você algo que eu não consigo executar? E me apego em textos, em palavras, mesmo
sabendo que estas não dizem nada e perdem a força diante da imagem que passa
veloz na minha frente de um você deitado debaixo dos meus lençóis. Como posso
te pedir serenidade, diante do caos que se transformou a minha mente?
Como posso te explicar que na sua imagem vejo muitas, muitas
coisas, que sinto muitas, muitas coisas, dentre elas a esperança de um futuro
brilhante, em que nós juntos iluminamos um ao outro? Como posso te explicar que
vejo o futuro em você, mas não o vejo em mim, a cada dia que passa e que sinto
as lágrimas corroerem meus olhos e descerem lentas até a ponta do meu rosto,
molhando os papéis em que planejei escrever?
Como posso esperar qualquer coisa, qualquer palavra,
qualquer som, qualquer sorriso, se não vejo o brilho necessário dentro de mim?
Me sobra a esperança de desatar estes nós, chegar à raiz do
problema, ao fio da meada, ao xis da questão. E penso poder te entregar esta
fórmula, e juntos resolvermos esta difícil equação de cabeça e peito abertos,
de olhos pareados, mãos dadas com dedos cruzados apontando o futuro.
“Naturalmente vazio, maravilhosamente brilhante.”

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

"Coisas que não podemos esquecer" - sobre perda

Por Monja Coen Sensei



As verdades e as mentiras não disputam mais pelo mesmo espaço. Luz e sombra conversam tranquilamente no sofá.


Livres de validades, os prazos, as dívidas, as dúvidas, os contratos, os créditos, e as senhas saem batendo asas.

Um velho segredo é descoberto dentro da gaveta, outro mais novinho, sorri maroto no fevereiro da agenda.


Engraçado, mas o bibelô da estante que sempre foi verde agora parece azul.

Sem dramas, a metamorfose caminha pela casa implacável, irreversível, silenciosa.


Nenhum sonho fica escondido embaixo da cama.

Apenas lembranças exalam como perfumes que a gente sente de olhos fechados.


Desesperada, a caneta esferográfica insiste nas anotações, números de telefones, coisas que a gente não pode esquecer, coisas que a gente não pode esquecer, coisas que a gente não pode esquecer, coisas que a gente não pode esquecer.

Mas o importante já foi guardado.


A morte de alguém que amamos é uma enxurrada, um desabamento dentro de nós , sem sobreviventes.

Meu amigo Fred levou consigo a alma da casa e de cada objeto.


Levou a paisagem da janela, nossos finais de semana, levou uma batida do meu coração.

Levou as caipirinhas, os sorvetes e uma linha da minha mão que era só dele.