Quem me conhece sabe: sou apaixonada por livros. Acredito piamente que, como dizia Marco Túlio Cícero, uma casa sem livros é como um corpo sem alma. Parafraseando outro dos grandes mestres, Jorge Kishikawa, quando fico sem ler, tenho hipoglicemia na alma - e por isso meu carro, meu quarto, minha casa e meu mundo é totalmente recheado de livros.
Como sério vício que possuo, a compulsão por comprar e trocar livros é grande. Me ponha dentro de uma Livraria Cultura e é capaz de me acharem somente dias depois, já meio desnutrida dentro do estoque. Tenho o péssimo hábito de, com muita frequência, comprar vários livros ao mesmo tempo – o que, invariavelmente, resulta numa pilha constante em cima do meu baú, que tento há anos (juro, anos) zerar e nunca consigo. Novos títulos vão sendo agregados à esta pilha, vários sendo lidos ao mesmo tempo, sem qualquer ordem ou sistematização. Meu vício é caótico.
Neste exato instante, olho para esta pilha de livros. No momento, ela conta com 9 títulos (Cem sonetos de amor de Pablo Neruda, já semi-lido; A ignorância e Risíveis Amores de Milan Kundera, meu autor preferido; Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley – devidamente recomendado pela querida Luli - , O guardião de memórias, de Kim Edwards e Fragmentos e Aforismos de Nietzsche, todos os 3 intocados; Filosofia Incomum de Marcia Tiburi e O Mundo de Sophia de Jostein Gaarder, ambos parcialmente lidos; e O Vendedor de Sonhos de Augusto Cury).
A pilha empacou especificamente por causa deste último livro. Nunca gostei do Augusto Cury, mas comprei o livro por recomendação de um amigo. Sequer li a contracapa, e quando comecei a leitura, logo no prefácio já saquei a arrogância do autor. Odeio gente arrogante, incluindo a mim mesma em certos estados alterados de humor, e por isso mesmo resolvi ler a peça. Empaquei. Não aguento mais ler nem uma linha sequer, e tenho ganas de, pela primeira vez desde a sexta série (com Ensaio sobre a Cegueira, do mestre Saramago), abandonar a leitura do livro pela metade – acreditem, é algo impensável para mim.
O problema não é o conteúdo do texto (bom, maneirinho, bem elaborado), mas o tom explícito de auto-ajuda. Me enerva. Assim como a leitura de certas revistas te faz se sentir “menos alguma coisa” (a Caras, a menos rica; a Boa Forma, a menos em forma; a Vogue, a menos bem-vestida; a Contigo, a menos informada; a Veja, a menos politizada), os livros que se apresentam tão claramente de auto-ajuda me fazem me sentir uma completa fracassada. Não apenas pelo tom simplório da escrita, que vamos combinar, é ótima no quesito “texto acessível a todos”, mas pelo grau de hipotetização absoluta dos personagens, pela estereotipia massiva em torno de todas as situações, do conto de fadas às avessas, puro estigma.
Acredito, não apenas como ser humano, mas também como terapeuta, que toda forma de estigmatização é preconceituosa – o livro, nesse nível, não deixa a desejar, pois lentamente vai mostrando ao leitor que dentro de todo ser humano existem aspectos opostos, dinâmicos, extremos. O bêbado irrecuperável aos poucos vira um sábio bonachão; o intelectual arrogante vira um humilde e emotivo pai de família; o ladrãozinho mequetrefe começa a aprender a dividir. Nada mais lúcido.
Tudo lindo se não fosse o maior dos clichês, e a verdade é que os clichês me incomodam horrores. Talvez eu mesma seja o cúmulo do clichê – uma psicóloga completamente maluca que toma remédios restritos, um curador ferido, um pajé meio zuado – mas tenho percebido, ao longo da vida e da profissão, que os clichês, por si só, não transformam nenhum indivíduo. Por consequência, não acredito que o livro do querido Dr. Cury, que, como ele mesmo proclama em seu prefácio, “escreve há mais de 25 anos e publica há 8, mais de 3 mil páginas inéditas”, vá ser um gatilho bem sucedido das mudanças sociais que ele tenciona catalizar. Tenho visto exemplos mais eficazes, mais próximos da realidade, alcançarem as massas com mais fervor – é o caso do lindíssimo Comer, Rezar e Amar, A cidade do Sol ou mesmo A cura de Schopenhauer, todos bests sellers menos renomados ou de fama tardia. *
O óbvio apelo religioso do livro também me incomoda. O jeito "não estou querendo defender a coisa, mas já defendendo...” do autor ao citar passagens bíblicas ou o próprio Jesus de Nazaré me soam lavagem cerebral subliminar – o que é totalmente diferente do que colocar pitadas de uma espiritualidade latente que está prestes a explodir, de forma não-religiosa, como em Comer, Rezar e Amar.
A realidade tal como se apresenta (negativa, massacrante, muitas vezes turva e vingativa) parece ser um meio muito mais ágil de tocar as pessoas. Todo mundo já viveu a dor, a perda, a ilusão, o que gera identificação imediata por parte do leitor. A verdade é que um texto belo e gramaticalmente bem escrito já não atinge a alma humana como agente de mudanças, apenas tangencia aquele sentimento de “uh-oh, realmente tem algo errado”. Como já dizia Platão, o belo só permanece belo se acompanhado do bom e do verdadeiro.
Confesso que sou intensa – sendo assim, apenas o drama realmente me comove e me agrega algum valor. Falo apenas por mim, e talvez aqui esteja sendo tão arrogante quanto o que mais detesto. Afinal, quem sou eu para criticar tão abertamente alguém que atingiu a fantástica marca de “7 milhões de livros vendidos somente no Brasil”? Admitamos, é um feito. E, na realidade, será que eu mesma conseguiria reunir elementos tão intrincados como o Dr. Cury, e ainda promover uma história com sentido e efeito romântico como em O Vendedor de Sonhos?
Honestamente não sei. Minhas idéias literárias jamais saíram do mundo das idéias, e nem mesmo sei se um dia se transformarão em tinta sobre celulose. Eis aqui um manifesto pró-realidade, e tão somente isso. Se a intenção é incentivar a independência emocional, nada melhor do que um belo drama caótico sobre a própria dependência. Não precisa nem prometer uma ajuda – todo mundo sabe que somente o desejo é responsável pela mudança. Nesse sentido, uma leitura simples e direta como Ping – a busca de um sapo por uma nova lagoa já é super bacana e lúdica (e nesse caso eu conheço os efeitos pois eu mesma recomendo a leitura para meus pacientes), ou Pollyana, que como bem disse o querido Fiore, foi o primeiro livro de auto-ajuda escrito, mas muito bem disfarçado de romance. Pros mais politizados, A Revolução dos Bichos também dá no que pensar, apesar do nítido tom anti-comunista, ou então absolutamente qualquer um dos livros do Kundera. O fato é que livro bom é como filme bom: depois de ler, você ainda fica pensando. Literatura que você lê e depois esquece é tão obsoleta quanto um Big Mc - fácil digestão, fácil excreção (argh).
Quanto à leitura do livro, penso em insistir mais um pouco. Fiquei sabendo, recentemente, que O vendedor de sonhos será uma trilogia, o que me faz me sentir culpada em não ler sequer o primeiro volume até o final (os outros, me desculpem, não vai dar). Como em toda situação em que me pego sendo crítica demais, espero que o que estou cuspindo pra cima caia bem no meio da minha testa – do contrário, fatalmente meu universo particular de livros ‘líveis’ tornará a se restringir às biografias, romances realistas ou fantasias água-com-açúcar. E viva o Crepúsculo!
“Pollyanna” – Eleanor H. Porter. Nacional, 1987.
“A cidade do sol” – Khaled Hosseini. Nova Fronteira, 2007.
“Ping – a procura de um sapo por uma nova lagoa” – Stuart Avery Gold. Best Seller, 2007.
“A Revolução dos Bichos” – George Orwell. Globo, 1945.