quarta-feira, dezembro 14, 2011

Meu deserto


Não sei dizer exatamente quando me dei conta de que o deserto exercia tamanho fascínio sobre mim. Certamente foi antes de eu vê-lo pela primeira vez, ainda em terras americanas, em Nazca, Peru. Naquela situação, uma revoada de andorinhas cruzaram os céus do meu estômago e deixaram suas pegadas ansiosas em minha alma.

Passou rápido. Depois de uns dias eu já não sentia mais. E a racionalização do meu dia-a-dia tomou conta deste sentimento. Outras andorinhas voaram aqui dentro e apagaram as pegadas do deserto de dentro de mim. E durante mais de 5 anos, eu dormi acordada.

Ter encontrado o Sahara mudou a minha vida de uma maneira que, a princípio, nem eu notei. Ninguém notou. Ninguém podia ver que, por dentro das minhas pupilas, um amarelo se estendia por todo canto, trazendo aridez e calor para uma visão interna há tanto adormecida.

Após algum tempo, ficou nítido. Eu virara parte dele.

O deserto é silêncio, e diante dele tive a certeza de que magia acontece em suas horas noturnas. Deuses, magos, bichos e almas nele habitam sem que ninguém nunca veja, mas é possível sentir seus rastros – basta ficar em silêncio e contemplar o grande nada que se expande diante dos olhos. Basta encontrar o vazio.

Suavemente as vozes do deserto passam a falar com você. E elas falam sobre tudo aquilo que você não conhece e que jamais conhecerá – algo sobre a existência de coisas que só aparecem quando não há ninguém para ver, e que por isso mesmo jamais poderão ser testemunhadas. O deserto fala com você, e te dá a resposta que você tanto procurava: de que no nada residem todas as coisas.

O fascínio do deserto está justamente em seu paradoxo sobre minha alma – jamais alcançarei toda sua amplitude, jamais conhecerei seus mistérios, jamais saberei ao certo o que há nele, mesmo que percorra todos os seus quilômetros de extensão. As areias me engoliriam muito antes de revelar qualquer coisa, qualquer coisa sobre respeito, magia e vazio.

Mesmo distante do deserto, sinto que algo em mim foi profundamente transformado após meu contato com ele. Talvez meu interior tenha ficado um tanto mais árido, um tanto mais duro, porém ainda assim com vida e mistério – que somente são testemunhados quando não há ninguém olhando.

Hoje compreendo meu vazio emocional como uma extensão de meu Deserto do Sahara. Tenho vida, tenho água, mas somente quando me esforço e percorro com respeito os caminhos profundos de minhas areias movediças. Armadilhas, tuaregues, feras mortais. Tudo isso dentro da areia que resiste incólume sob as interpéries do tempo. Estão prontos para avançar e engolir o que não for digno de experienciar tamanha devastação da natureza.

Nas palavras de Miguel Souza Tavares: o deserto é nada e é silêncio, e por isso também é mistério, solidão e descoberta. O deserto é viagem sem regresso.

São palavras de profundo, profundo significado para mim. Hoje sinto que apenas no calor do deserto conseguiria me reencontrar. Longe dele, me sinto amputada de uma parte fundamental da minha existência. Me alimento dele. E longe dele, definho.

Porque me alimento de Tudo, e somente no Nada Tudo isso poderia caber.

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