Ansiógeno e de-li-ci-o-so. Às vezes cansa de tanto que falta rotina, de tanto que sobra desafio, de tanta gratificação pessoal, de tanto crescimento e tanta evolução. Cada dia dentro daquele hospital é (perdão novamente) uma loucura!
Bem no comecinho, eu assustava. Pensava com meus botões que tipo de doidões eu ia encontrar por lá... será daqueles que babam? Daqueles que gritam? Que tiram a roupa no ponto de ônibus?
E, pasmem, tem disso e tem muito mais. Tem gente que baba, que grita, que chora, que arranca as calças em pleno pátio. Tem daquele tipo que acha que é filho do George Lucas com a Elizabeth Taylor; tem do tipo que acha que construiu o hospital nos século XIV; tem gente que pisa na roupa antes de se vestir, e tem também gente que te pede abraço no meio do corredor porque o marido (que não existe) não veio no horário de visita. Tem também daqueles que te trata mal porque você não dá um diagnóstico; tem aquela que, de tão mal e agressiva, foi pro ECT e voltou bem mais mansinha. Tem doido que sabe mais do que médico, e tem médico que é muito mais doido do que o filho do George Lucas. Tem maluco que é mais saudável que a família inteira, e tem também daquelas velhinhas doidinhas, que acham que você é a entrevistadora do programa do Raul Gil e te chama de ‘fofuxa’.
Tem de tudo. Pra todos os gostos. Tem dos mais graves.
Mas tem também os menos graves: vózinha deprimida, tiozão alcoolista, marmanjo com ‘timidez excessiva’, que não consegue trabalho há mais de 10 anos. Tem aqueles ansiosos, e também aqueles carentes, que querem saber se você quer ser amiga, em vez de terapeuta. Tem a típica ‘vizinha fofoqueira’, que de vez em quando acham que estão falando mal dela ou fazendo macumba. Tem até aquele tipo retraído, que não te olha nos olhos, e que quando se abre desaba e diz que não consegue parar de pensar em sexo.
Esses, a gente costuma chamar de ‘mais normais’, embora a normalidade seja totalmente relativa. Ali dentro, ninguém é normal. Muito menos eu, que faço parte de uma porcentagem ridícula de pequena dos que não têm nenhuma psicopatologia. Ali dentro, a doida sou eu. Os normais, os pacientes.
Outro dia, entrando no hospital pela porta do PS (onde geralmente rolam os maiores barracos do mundo, como no caso da mulher que chegou de ambulância, e que, completamente descontrolada, precisou de 4 enfermeiros gigantes pra evitar que ela enfiasse a mão na cara do marido, que a tinha traído com a própria cunhada. Louca? Pois sim...), encontro a turma da Geral I, onde ficam internados os adultos portadores de alguma doença mental. E não é que, ao contrário de mim, sonolenta e mau-humorada, estavam todos cantando Atirei-o-pau-no-gato, rindo e se abraçando?
Eis que a Rita*, uma tiazinha bipolar me cumprimenta: “Bom dia, flor do dia! Só tem flor neste hospital!” Mania? Bom-humor...
Chegando no elevador, um paciente esquizo, que conheci fumando um cigarro no jardim, me vê com a garrafinha de água na mão.
- Oi doutora!
- Ô seu Otávio*! Não ia aparecer lá na Psicologia?
- Ah, doutora, disseram que não preciso.
- Que bom então.
(Silêncio. Olhos vidrados na minha garrafinha.)
- Água, doutora?
- É, água!
- Precisa né?
- Ô!
- Éééé... eu tomo 5, 6, 7, 12 garrafinhas dessa por dia!
- Tudo isso, Seu Otávio? Mas aí é água pra mais de metro!
- Ou pra mais de litro!
- Era o que eu queria dizer!
- Faz bem né Doutora? Pro cabelo, pra pele, pro olho, ouvi dizer que faz bem até pro cotovelo!
- Pro cotovelo, Seu Otávio?
- Pro cotovelo e pra unha. Olha aqui a minha.
- Tô vendo... uau!
- Foi a Dorinha que fez.
- A Dorinha, seu Otávio...?
(Interferência da TO que, ao lado do paciente, acompanhava a história toda)
- Ai seu Otávio, lembra que ontem a gente falou? A Dorinha já faleceu, seu Otávio.
- Tá vendo, doutora? Depois me dizem que não preciso de psicóloga...
Cada voltinha pelo hospital é uma história diferente. Cada atendimento, uma descoberta. Cada grupo, uma paixão. Cada conversa, uma risada.
- Doutora que roupa mais linda! Quando eu era mulher adorava uns casacos assim!
E quem é que pode julgar? Quem nunca se descontrolou por uma traição? Quem nunca deu uma surtadinha, assim, mesmo que de leve? Quem nunca teve medo de estar pirando, ou não confiou muito no próprio julgamento dos fatos da realidade? Quem nunca se fez de desentendido que jogue a primeira pedra!
É maravilhoso trabalhar com pessoas tão especiais. Um verdadeiro privilégio. Acompanhar de pertinho cada um de seus medos, cada uma de suas neuroses, cada uma de suas manias, saber de seus amores, de suas falhas, dos rancores e desejos, intimamente. Não há o que pague a honra de ser terapeuta de pessoas tão necessitadas, tão abandonadas, tão carentes de cuidados, de afetos, de investimentos.
É olhar nos seus olhos todos os dias e se sentir recompensada por uma lágrima de dor a menos, ou uma de felicidade a mais. É se sentir parte integrante de uma mudança essencial de vida, de uma evolução enquanto ser humano, de uma escapada de suicídio. É se perceber como agente ativo de uma visita familiar a mais, de uma ECT a menos, de mais questionamento, de menos atuação. É ganhar dois pacotes de Halls comprados no semáforo com os últimos troquinhos da condução.
É, de verdade, sentir que o ser humano é belo, mágico, único... e que agindo juntos tudo é possível. É sentir que se faz a diferença, quando se ama ao próximo com sinceridade.
E é assumir, antes de tudo, e da forma mais humilde possível, que ninguém é muito diferente de nós mesmos... basta entrar em universos paralelos, alternativos, doentios.
Doentios.
Mas nunca loucos.
Nunca!
* Os nomes verdadeiros foram trocados por fictícios, para se preservar a identidade real dos pacientes.
3 comentários:
adorei...
é um privilégio mesmo, poder estar tão por dentro das coisas de dentro!
e faz a gente acreditar naquela velha frase... que de médico e louco, todo mundo tem um pouco!
Loucura né Veronika sempre mostrou me que seria o certo a fazer me internar. quero uma vaga por ai. será que Veronika esta certa? voc~e me faz parecer que sim. que veronika ta certa e que eu de taõ maluco devo me internar na vida. tem vaga? Veronika de p. coelho)parabens adorei muito.
Nossa... Nana, vc não vai acreditar... mas fiquei emocionada com o seu texto. Parecia que eu estava lá com você, vivenciando tudo isso... todas as cores, os cheiors, as pessoas!
Doidera mesmo... mas será que é nossa ou deles?! Não se sabe, cada um tem sua razão...
Adoreiiiii...
mil bjocassssssssssss
Postar um comentário